Criada em março de 1987 em Itapira através do Decreto nº 24/87
Criada em março de 1987 através do Decreto nº 24/87 pelo prefeito David Moro Filho, a "Casa de Menotti Del Picchia" guarda objetos, livros, roupas, fotos, pinturas e esculturas do poeta. Com cinco anos de idade sua família mudou-se para Itapira, em cuja vida cabocla encontrou a inspiração para o seu famoso poema "Juca Mulato".
Itapira com sua paisagem rural, impulsionou a decolagem literária de Menotti. E foi na fazenda Santa Catarina que ele escreveu Juca Mulato.
Discurso do poeta Paulo Bonfim, ao se despedir de Menotti Del Picchia,
na Academia Paulista de Letras, em 23 de agosto de 1988.
Parte o cavaleiro andante da modernidade, legando-nos o exemplo de sua carismática vocação de viver. O gênio de Menotti fulgura em múltiplas facetas que poderiam ter sido múltiplos heterônimos. Em tudo colocou a marca de sua paixão. Generoso consigo e com os outros, aos moços estendeu mãos experientes abrindo portas e apontando caminhos. Foi donatário de horizontes e sua inteligência um caleidoscópio que encantava pela incansável renovação das imagens. Entre todos os personagens que criou, o mais fascinante foi ele próprio! Poucos personificam tão bem o que o Brasil tem de mais generoso e inquieto. A vida de Menotti foi um ritual de paixão. A ele não podemos dizer -- descanse em paz, e sim -- prossiga sempre. Sua morte transforma-se em imensa aventura cósmica. A eternidade ama aqueles que amaram muito e Menotti, de coração aceso, penetra o reino do amor absoluto.
A Casa de Menotti Del Picchia foi criada em março de 1987, através do Decreto 24/87, pelo prefeito David Moro Fº. Esse museu guarda o acervo
literário, artístico e pessoal do renomado poeta brasileiro.
Jornalista, poeta, romancista, contista, ensaísta, teatrólogo, historiador e
pioneiro da indústria cinematográfica brasileira, Menotti Del Picchia é uma
das maiores expressões da vida cultural paulista, com destacada atuação em todas as áreas por onde trafegou, entre as quais a Semana de Arte
Moderna em 1922, da qual foi um dos líderes.
CRONOLOGIA:
Vida e Obra (por Jácomo Mandatto-Diretor da Casa de Menotti Del Picchia)
1892- Nasce Paulo Menotti Del Picchia, a 20 de março, numa casa da
Ladeira São João, em São Paulo. Filho de Luís Del Picchia e Corina Del Corso Del Picchia, ambos toscanos, região da Itália
central.Teve cinco irmãos: Carolina, José, Liberal, Luís e Raineri.
1897 - Mudança para Itapira, interior do Estado.
1900 - É matriculado no Grupo Escolar "Dr. Júlio Mesquita", em Itapira.
1903 - Conhece o escritor Coelho Neto, que visitou Itapira na Festa das Árvores. Termina o curso primário.
1904 - Inicia o curso ginasial no "Culto à Ciência", em Campinas. A 25 de dezembro publica seu primeiro trabalho, a crônica "Natal", no jornal Cidade de Itapira (primeira fase).
1906 - Transfere-se para o Ginásio Diocesano "São José", de Pouso Alegre (MG).
1907 - Publica seus primeiros poemas em O Estudo, folha literária do Ginásio de Pouso Alegre.
1908 - Em julho, funda e dirige o jornalzinho O Mandu, órgão dos alunos externos do Ginásio São José, de Pouso Alegre, do qual circularam
poucos números.
1909 - Solenidade de formatura em Ciências e Letras, em Pouso Alegre, a 25 de janeiro. Matricula-se na Faculdade de Direito de São Paulo.
Em fins de abril publica no jornal Cidade de Itapira (segunda fase)
uma "Croniqueta Paulistana", a primeira que escreve em São Paulo, relatando a sua entrada para a Faculdade do Largo São Francisco. Mantem-se em São Paulo com um emprego que lhe arranjou o bispo
Dom Nery, no Seminário Episcopal (hoje Museu de Arte), onde faz a
escrita da casa.
1910 - Conhece, na Faculdade, durante uma conferência, o poeta Olavo
Bilac. A 10 de julho, com 49 anos, falece sua mãe, em Itapira.
1912 - Casa-se a 20 de março, dia de seu vigésimo aniversário, com a
fazendeira itapirense Francisca da Cunha Rocha Sales, conhecida
como Pitutica, filha de José Gomes da Cunha Sales e Francisca
Avelina da Cunha Rocha Sales.
A 15 de dezembro nasce o primeiro filho do casal: Ulpiano.
1913 - Publica seu primeiro livro: Poemas do Vício e da Virtude. Conclui o curso de Direito, sendo o segundo aluno da turma.
1914 - Nasce, a 4 de janeiro, o segundo filho: Hélio Celso. Passa a advogar em Itapira e região.
1915 - A 14 de março nasce a filha: Wanda Elza. Funda em Itapira, a 2 de
julho, o jornal O Grito. No dia 14 de julho são batizados de uma só
vez os três filhos de Menotti e Francisca.
1916 - A partir do nº 28, de 7 de janeiro, o jornal O Grito tem seu nome
mudado para Tribuna Itapirense. A 4 de abril nasce outra filha:
Maria Astyris.
1917 - Publica os poemas Moisés e Juca Mulato, este editado em Itapira, numa edição de 500 exemplares.
1918 - Está escrevendo o poema Angústia de D. João e o romance Laís.
Nasce mais uma filha: Myriam Semíramis, a 1º de março.
Recebe convite para trabalhar no Correio Paulistano, em são Paulo.
Muda-se, sozinho, para a Capital. Não consegue o lugar que
lhe fora prometido no jornal. É convidado para redatoriar A Tribuna, de Santos.
Nessa cidade, convive com Ribeiro Couto, Afonso Schmidt, Galeão Coutinho, Vicente de Carvalho, Martins Fontes, Valdomiro Silveira, Paulo Gonçalves e Ibrahim Nobre.
1919 - Aparece a segunda edição de ca Mulato, que reproduz artigo de
Júlio Dantas, publicado em Portugal. Nesta edição Menotti anuncia
seis livros em preparo: os romances O Paradoxo, A Professora e
Laís, e as peças Suprema Conquista, Covarde e O Incubo. Conhece
Oswald de andrade e Mário de Andrade. Descobre, com Oswald, o
escultor Vitor Brecheret.
1920 - Retorna a São Paulo depois de permanecer por dois anos
em Santos. Diretor de redação do jornal A Gazeta. Torna-se
redator do Correio Paulistano, assinando artigos com o seu nome
e com os pseudônimos Hélios e Aristófanes.
Com seu irmão José, monta uma empresa cinematográfica, a
Independência Filme, e produzem os primeiros filmes falados no
Brasil: Alvorada de Glória, Acabaram-se os Otários e O Campeão
de Futebol.Funda, com Oswald de Andrade, a revista literária Papel
e Tinta.
Publica seu primeiro romance:
Flama e Argila, provavelmente o anunciado com o título O Paradoxo. (Em 1927 seria lançada a segunda edição de Flama e Argila com o
título mudado para A Tragédia de Zilda. Posteriormente, o romance
seria reeditado com seu nome primitivo.) Instala uma fábrica de
relógio para torres de igrejas. Publica Máscaras.
1921 - No dia 9 de janeiro é homenageado com um banquete no
restaurante Trianon, pela publicação de Máscaras, sendo saudado,
entre outros, por Oswald de andrade. Recebe sua máscara em
bronze, obra de Brecheret. Mário de Andrade está presente. Era
o prenúncio do Modernismo, ainda chamado de Futurismo. Publica
os romances Laís e A Suprema Façanha (primeiro título de Dente de
Ouro), além de O Pão de Moloch, crônicas. Sai a terceira edição de
Juca Mulato. Sua família já reside em São Paulo. É encenada no
Teatro Municipal de São Paulo a sua peça Suprema Conquista,pela
Companhia Dramática Nacional. É o porta-voz do presidente do Estado, Washington Luís. Conhece Rodrigues de Abreu e Plínio Salgado.
1922 - A 1º de janeiro nasce a filha Sulamita Célia. Em fevereiro é um dos líderes da Semana de Arte Moderna, realizada no Teatro Municipal
de São Paulo.
A segunda noitada, a 15 desse mês, é comandada por Menotti, que
também pronuncia uma conferência. Publica o poema A Angústia de
D. João, a novela A Mulher que Pecou e o romance O Homem e a
Morte. Sai a segunda edição de Máscaras. Conhece Joaquim Inojosa, difusor do Modernismo em Pernambuco. Conhece Tarsila
do Amaral, que chegara de Paris em junho desse ano, e é formado
o "Grupo dos Cinco", com Mário de Andrade, Menotti Del Picchia, Anita Malfati e Tarsila.
1923 - É publicado o livro São Paulo e seus homens de letras - Menotti
Del Picchia e sua obra, de Moacir Chagas, com ataques a Menotti. Publica o livro de crônicas O Narizde Cleópatra e reedita o
romance A Suprema Façanha, com o título mudado para Dente de Ouro.
1924 - Publica O Crime Daquela Noite, contos.
1925 - Publica Chuva de Pedra, poesia.
1926 - É eleito deputado estadual para substituir Luís Pereira de Campos
Vergueiro, que passou para o Senado, sendo empossado a 12 de
julho.Sai a quarta edição de Laís.
1927 - É lançada a terceira edição de Moisés. Publica: Poemas de Amor,
A Tragédia de Zilda (nome anterior de Flama e Argila), O Curupira e
o Carão (de parceria com Cassiano Ricardo e Plínio Salgado), e Por
amor ao Brasil. Nasce, a 5 de novembro, seu sétimo e último filho: Mário Fúlvio.
1928 - É reeleito deputado estadual, a 28 de fevereiro. Publica: Amores de Dulcinéia, República dos Estados Unidos do Brasil,
O Tesouro de Cavendish (de parceria com Alfredo Ellis Jr.) e
O Momento Literário Brasileiro.
1929 - É eleito para a Academia Paulista de Letras, a primeiro de
maio, sendo empossado na Cadeira nº 40 a 31 de julho. Publica o Manifesto do Verde- Amarelismo, a 17 de maio, no
Correio Paulistano, com Plínio salgado e Cassiano Ricardo.
1930 - Perde seu mandato de deputado. Publica o romance A República 3000 que, em 1933, teria sua segunda edição com o título
mudado para A Filha do Inca.
1931 - Publica: A Crise da Democracia.
1932 - Secretário do governador Pedro de Toledo. Participa da revolução Constitucionalista. Publica o ensaio A Revolução Paulista e
o romance A Tormenta. Trabalha nos jornais Diário de São Paulo
e Diário da Noite a convite de Assis Chateaubriand. Dirige a
revista A Cigarra. Publica as revistas São Paulo e Nossa Revista.
Seu pai morre em Itapira, a 22 de dezembro.
1933 - É preso com Assis Chateaubriand pela polícia política de Vargas. Publica Jesus, A Filha do Inca, O Despertar de São Paulo,
Poesias, Pelo Divórcio e Viagens de João Peralta e Pé-de-Moleque
no País das Formigas.
1935 - É encenado o poema sacro Jesus, no Teatro Municipal de São Paulo, a 18 de abril, em versão italiana de Ferruccio Rubbiani.
Teve outras apresentações posteriores. Publica: Soluções
Nacionais.
1936 - Publica: Kalum, o Mistério do Sertão.
1937 - Funda o movimento Bandeira, com Cassiano Ricardo e Cândido
Mota Filho, com qem dirige o jornal Anhangüera, o órgão desse movimento. A revista Novela, de Buenos Aires, publica o
romance Dente de Ouro (Diente de Oro). Máscaras atinge 16
edições. Publica: Ensaio de Exposição do Pensamento Bandeirante.
1938 - Publica: Cumunká.
1940 - Publica o romance Salomé às suas custas. Candidata-se à vaga
de Luís Guimarães Fº na Academia Brasileira de Letras, mas retira-se
do pleito em favor do poeta Manuel Bandeira.
1942 - Em versão castelhana de Alberto Linhares é publicado na argentina
o romance Salomé. A Editora A Noite publica a segunda edição brasileira de salomé. Recebe o Grande Prêmio da Academia Brasileirade Letras com Salomé. Diretor do jornal A
Noite, de São Paulo.
1943 - Concorre à vaga de Xavier Marques na Academia Brasileira
de Letras, sendo eleito a primeiro de abril. Toma posse da cadeira nº 28 a 20 de dezembro, sendo saudado por Cassiano Ricardo.
1946 - A Editora A Noite inicia a publicação de suas Obras Completas.
1947 - Em julho,participa, como delegado brasileiro, do Congresso
de Escritores e Livreiros da América Latina, em Buenos Aires.
1949 - Viagem à Europa.
1950 - Ingressa no Partido Trabalhista Brasileiro. Elege-se deputado
federal por São Paulo.
1951 - É dado o nome de Juca Mulato a um Parque de Itapira, local onde escrevera partes do seu célebre poema.
1954 - É reeleito deputado federal.
1955 - Sua peça A Fronteira é encenada no Rio de janeiro, por Eva Todor
e sua companhia.
1956 - 1958- A Livraria Martins Editora publica as suas Obras Completas, em 13 volumes.
1958 - Primeiro Suplente de Deputado Federal.
1959 - Edição Especial de Juca Mulato publicada pela revista Leitura,
com capa de Portinari.
É comemorado o seu jubileu literário com grandes omenagens no Rio de Janeiro e São Paulo. Recebe o título de Cidadão carioca e o
de CIdadão Jundiaiense. Publica: Sob o Signo da Polimnia.
1960 - Assume o cargo de deputado federal com a morte de
Coutinho Cavalcanti.
1961 - Viagem aos Estados Unidos.
1962 - Inauguração do seu busto em Itapira, a primeiro de abril, obra
de Luís Morrone. Recebe o título de Cidadão Itapirense. Concorre às eleições deste ano mas não se reelege, encerrando sua carreira
política.
1966 - Realiza-se em Itapira a I semana Juca Mulato criada por Jácomo
Mandatto.
1967 - É comemorado em todo o País o cinqüentenario do poema Juca Mulato.
Morre sua esposa Pitutica. Cidadão Emérito de São Paulo.
1968 - Casa-se com Antonieta Rudge Miller. Publica: O Deus sem Rosto. É eleito Intelectual do Ano.
1969 - recebe a 20 de março, no auditório da Folha de São Paulo, o troféu
Juca Pato.
1970 - Publica a primeira etapa de A Longa Viagem, memórias. É homenageado pela Câmara Municipal de São Paulo.
1972 - Publica a segunda etapa de A Longa Viagem.
1974 - É publicada a Seleta em Prosa e verso, organizada por Paulo Ronái.
A 13 de julho, morre Antonieta Rudge Miller, sua segunda esposa.
1978 - A 20 de março é inaugurada a Praça Juca Mulato, no Ibirapuera, em
São Paulo. Publica: Entardecer, coletânea em prosa e verso.
1979 - Recebe o Prêmio Brasília, pelo conjunto de sua obra.
1982 - Recebe o troféu Francisco Matarazzo Sobrinho, a 23 de março. A Câmara de Pouso Alegre concede ao escritor o título de Cidadão Pouso-alegrense, em agosto. É eleito Príncipe dos Poetas Brasileiros.
1983 - É inaugurada em Itapira a Praça Poeta Menotti Del Picchia.
1984 - A Paulistur concede ao poeta diploma de honra e a medalha Cidade de São Paulo.
Recebe o Prêmio Moinho santista, de Poesia.
1987 - É inaugurada em Itapira, a 29 de março, a Casa de Menotti
Del Picchia, que guarda o acervo do escritor. Está localizada no Parque Juca Mulato.
1988 - Falece em são Paulo, na madrugada de 23 de agosto, aos 96 anos. Seu corpo foi velado na Academia Paulistade Letras e sepultado no
emitério São Paulo.
Opiniões sobre Menotti Del Picchia e sua presença no movimento modernista
"Você sabe que gosto de todos os seus livros, poemas, romances, escritos, e gosto muito e fundo e gosto sempre? do juca Mulato, de Colombina, Pierrot e Arlequim, de Salomé... do saci! gosto até de seu nome que é em si fino, diferente, entusiasmante."
Guimarães Rosa
"Foi Menotti Del Picchia que tomou a dianteira precisamente em 1922 que iria ser a data oficial da nova escola... Menotti Del Picchia publicou seu romance O Homem e a Morte nesse mesmo ano de 1922 em que Mário de Andrade faz seus primeiros poemas revolucionários contra a versificação parnasiana em voga.
Mas o abridor de caminhos em prosa foi Menotti Del Picchia com sua Flama e Argila de 1920. Podemos acrescentar que a poesia modernista se apresentava muito mais revolucionária que a prosa... O próprio Menotti, em poesia iria, depois de Juca Mulato, aceitar integralmente a imagem libertadora e nela ocupar, no "imaginismo", um lugar próprio ... Salomé é sua obra-prima em romance."
Tristão de Athayde
"Eu só tenho louvores para um escritor perseguido pela celebridade e pelas qualidades naturais que após dezenas de obras faz um honesto esforço para se renovar e consegue se realizar integralmente como Menotti Del Picchia em Salomé... Sem esquecer o poeta de Juca Mulato, o contista de croquizações fortes e o mais brilhante dos nossos cronistas vivos, considero Salomé o melhor, o mais completo dos livros de grande escritor, sua maior contribuição para a novelística nacional."
Mário de Andrade
"Creio que um escritor não pode desejar maior compensação e melhor alegria do que chegar a ser tão amado pelo seu povo como acontece com Menotti. Quem não se emocionou com seus poemas, romances, contos e crônicas? ainda mais que a consagração da crítica, que o reconhecimento dos seus confrades, sua glória é esse calor popular, esse amor do povo que cerca sua poesia e sua fugura."
Jorge Amado
"Seu romance Salome´, palpitante de vida, com suas múltiplas personagens, seu entrecruzamento de dramas, seu lirismo, seus três planos de poesia quase superpõem uns aos outros: a poesia da cidade, da fazenda e da floresta selvagem-das pessoas, das almas exaltadas ou abatidas-e, na cúpula, a poesia bíblica,Herodíade, Salomé com seu gosto de sangue-tudo isso forma o mais fascinante romance que continua vivo em nosso espírito após voltada a última página."
A PAZA alva pomba da paz voou aos céus serenos.Embaixo homens se agitavamentre gritos e tiros.Paquidermes mecânicossulcavam fossosrasgando trincheiras.Cansada de librar-se nas alturasa pomba da pazbuscou na terra um pousoe flechounum vôo retorumo a uma coisa imóvelhirta e muda no raso campo verde.E pousoucalma e tristesobre as mãos cruzadas de um cadáver.
ITAPIRAÓ noites de luar da minha terra... Agora,eu me lembro de cor desses ermos lugares...A alma se me abria à noite cismadora,voava ébria da luz nos célicos luares...Que mágico lugar! Voava e eu não sabia...Não sabia dizer nos seus longos cismaresse era melhor viver no céu, que tudo encerra,ou se é melhor sonhar no chão da minha terra!...Sonhar! Sonhar ali... Sob um céu tão purocomo é puro um olhar duma casta criança...Sonhar! Mas ali só, sob esse céu, sob essecristalino luzir de estrelas...Sobre a terra em que a flor naturalmente cresce,como era a paixão em duas almas belas...
ITAPIRA 2Itapira é sempre aquela moça jovial e faceiraque se veste à maneira de princesa,trescalando a cravo,alvejando nas rendas de nuvens brancasdum céu azul,azul como devera ter sido o olhar de Eva,se é que nossa primeira mãe foi loura...O parque está uma delícia...O éden está aqui.Se eu fosse sábio,argumentaria nesse sentido,para oferecer ao número das verdades positivas mais uma:" Adão devera ter sido itapirense..."Hão de me chamar inovador,taxar-me-ão de fantasista,porém a beleza natural desta graciosa terrafez-me cair em pecado,fazendo-me disputar verdades à própria bíblia...
O VÔOGoza a euforia do vôo do anjo perdido em ti.Não indagues se nossas estradas, tempo e vento,desabam no abismo.Que sabes tu do fim?Se temes que teu mistério seja uma noite, enche-ode estrelas.Conserva a ilusão de que teu vôo te leva semprepara o mais alto.No deslumbramento da ascensãose pressentires que amanhã estarás mudoesgota, como um pássaro, as canções que tensna garganta.Canta. Canta para conservar a ilusão de festa ede vitória.Talvez as canções adormeçam as ferasque esperam devorar o pássaro.Desce que nasceste não és mais que um vôo no tempo.Rumo do céu?Que importa a rota.Voa e canta enquanto resistirem as asas.
PIEDOSA MENTIRAOntem na tarde loura e de aquarela,alguém me perguntou: "Como vai ela?Como vai teu amor?" - Eu respondi:" Não sei. Uma mulher passou na minha vida,mas não lembro... " E, nessa hora comovida,como nunca lembrava-me de ti!E menti por pudor... A mágoa que alvoroçanosso peito é tão santa, tão pura, tão nossaque se esconde aos demais.E se uma voz indaga contristada:" Estás sofrendo?" - "Não, não tenho nada..."E é quando a gente sofre mais...
POEMAS DO VENTOGastar-se no tempodiluir-se no ventoevolar-se no sonhodeixando- haverá quem o colha? -um resíduo...Memória.Levarei por onde andeuma inquietação mais nadaimpulso vital que extingodentro de um pouco de lama.Tal que o vento que bailafazendo seu corpo efêmerocom a poeira das estradas...
SONETOSoneto! Mal de ti falem perversosque eu te amo e te ergo no ar como uma taça.Canta dentro de ti a ave da graçana gaiola dos teus quatorze versos.Quantos sonhos de amor jazem imersosem ti que és dor, temor, glória e desgraça?Foste a expressão sentimental da raçade um povo que viveu fazendo versos.Teu lirismo é a nostálgica tristezadessa saudade atávica e fagueiraque no fundo da raça nos verteua primeira guitarra portuguesagemendo numa praia brasileiranaquela noite em que o Brasil nasceu...
VELHA CANÇÃONão penses que não te esperona aparente indiferença.Esta fingida descrençasó disfarça desespero.Se a falsa máscara friapudesse quebrar esta ânsiasaberias que a constânciaé meu pão de cada dia.Um pudor duro e severoesperar desesperadoé o que nutre este pecadode querer como te quero.Destarte - tímido louco -não ouso sondar tua almae nesta insofrida calmadia a dia morro um pouco.
DESTINOAmanha eu vou pescarHá um peixe vitalizadoque a Ritinha vai guisarna panela de alumínioque brilha mais que o luar.Hoje ele esta no seu liquidoe opaco mundo lunar.Pequena seta de pratafurando a carne do mar.Qual será ? O bagre flácidode cabeça triangular?O lambari que faíscacomo uma mola a vibrar?O feio e molengo polvomonstruoso, tentacular?O peixe-espada de níquel,a viva espada do mar?
JUCA MULATOJuca Mulato nasceu em Itapira, cidade da zona mojiana do Estado de São Paulo,em 1917. Seu pai, recém-formado em Direito e fazendeiro nessa cidade, acabarade publicar na Capital paulista seu poema Moisés. Exercia agora uma vagaadvocacia numa terra quase sem demandas e dirigia o jornal local, Cidade deItapira, em cujos prelos imprimiu o primeiro exemplar do seu poema.Foi no ambiente da fazenda Santa Catarina da Capoeira do Meio e na paz e nosilêncio do parque que se debruça sobre o Cubatão, bairro no qual serpeja oRio da Penha, em cujas margens bivacavam ciganos, que a imagem do caboclodo Mato e sua alma lírica empolgaram o advogado-poeta.E a Filha da Patroa ?Essa, ainda hoje, nascerá no coração de cada leitor do poema quando hajaatingido a idade do amor. É uma idéia e um sonho. Continuará a lembrar,vida afora, a criatura que teria sido o complemento do seu ser, realizaçãosempre sonhada e impossível de um perfeito amor ideal.Compõem o poema o Céu e a Terra. Todas as coisas telúricas e celestes,o chão que abriga o homem e o alimenta e o que há no mistério do azulquando ele olha para as estrelas. Ali descobre uma nova e mágica dimensãodo universo: os animais, como o prudente e confidente Pigarço e os lerdosbois pensativos e decorativos; o galo, clarim do dia que ilumina as coisaspara a vida e oferece as maravilhas do mundo ao homem que acorda.A fala do "Juca" é coloquial e divina. Sai da boca do homem e vem da conexãomágica que ele tem com as coisas. É que o universo é um eterno diálogo devozes mudas. Cabe-lhe comunicá-las às demais criaturas. Ele é o intérprete da formidável comunhão espiritual que nos envolve numa harmoniosa coesão devivências e mistérios regida pela fatalidade dessa divina força que é o amor("...Che muove il sole e l`altre stelle...")GerminalNuvens voam pelo ar como bandos de garças,Artista boêmio, o sol, mescla na cordilheirapinceladas esparsasde ouro fosco. Num mastro, apruma-se a bandeirade São João, desfraldando o seu alvo losango.Juca Mulato cisma. A sonolência vence-oVem, na tarde que expira e na voz de um curiango,o narcótico do ar parado, esse venenoque há no ventre da treva e na alma do silêncio.Um sorriso ilumina o seu rosto moreno.No piquete relincha um poldro; um galo álacretatala a asa triunfal, ergue a crista de lacre,clarina a recolher entre varas de cerdos emexem-se ruivos bois processionais e lerdose, num magote escuro, a manada se abisma na treva.Anoiteceu.Juca Mulato cisma.Como se sente bem recostado no chão!Ele é como uma pedra, é como a correnteza,uma coisa qualquer dentro da natureza,amalgamada ao mesmo anseio, ao mesmo amplexo,a esse desejo de viver grande e complexoque tudo abarca numa força de coesão.Compreende em tudo ambições novas e felizes,tem desejo até de rebrotar raízes, deitar ramas pelo ar,sorver, junto da planta, e sobre a mesma leiva,o mesmo anseio de subir, a mesma seiva,romper em brotos, florescer, frutificar!"Que delícia viver! Sentir entre os protervosrenovos se escoar uma seiva alma vivana tenra carne a remoçar o corpo moço..."E um prazer bestial lhe encrespa a carne e os nervos;afla a narina; o peito arqueja; uma lascivaonda de sangue lhe incha as veias do pescoço...Ei-lo, supino e só, na noite vasta. Um cheiroacre de feno lhe entorpece o corpo languee, no torso trigueiro,enroscam seus anéis serpentes de desejose um pubescente ansiar de abraços e de beijosincendeia-lhe a pele e estua-lhe no sangue.Juca Mulato cisma.Escuta a voz em courodos batráquios, no açude, os gritos lancinantesdo eterno amor dos charcos.É ágil como um poldro e forte como um touro;no equilíbrio viril dos seus membros possanteshá audácias de coluna e elegância dos barcos.O crescente, recurvo, a treva em brilho frangee, na carne da noite, imerge-se e se abismacomo num peito etíope a ponta de um alfanje.Juca Mulato cisma...A natureza cisma.Aflora-lhe no imo um sonho que braceja;estira o braço, enrija os músculos, boceja,supino fita o céu e diz em voz submissa:" Que tens, Juca Mulato ?..." e, rebolcado na erva,sentindo esse cansaço irritante que o enervadeixa-se, mudo e só, quebrado de preguiça.Cansado ele ? E por quê ? Não fora essa jornadaa mesma luta, palmo a palmo, com a enxadaa suster no café as invasões da aninga ?E, como de costume, um cálice de pinga,um cigarro de palha, uma jantinha à toa,um olhar dirigido à filha da patroa ?Juca Mulato pensa: a vida era-lhe um nada...Uns alqueires de chão, o cabo de uma enxada,um cavalo pigarço, uma pinga da boa,o cafezal verdoengo, o sol quente e inclemente...Nessa noite, porém, parece-lhe mais quenteo olhar indiferenteda filha da patroa..."Vamos, Juca Mulato, estás doido ?Entretanto, tem a noite lunar arrepios de susto,parece respirar a fronde de um arbusto.O ar é como um bafo, a água corrente, um pranto.Tudo cria uma vida espiritual violenta.O ar morno lhe fala, o aroma suave o tenta..." Que diabo !" Volve aos céus as pupilas, à toa,e vê, na lua, o olhar da filha da patroa...Olha a mata: lá está! O horizonte lho esboça,pressente-o em cada moita, enxerga-o em cada poçae ele vibra, ele sonha e ele anseia, impotente,esse olhar que passou, longínquo e indiferente!Juca Mulato cisma. Olha a lua e estremece.Dentro dele um desejo abre-se em flor e crescee ele pensa, ao sentir esses sonhos ignotos,que a alma é como uma planta, os sonhos como os brotos,vão rebentando nela e se abrindo em floradas...Franjam de ouro, o ocidente, as chamas das queimadas,Mal se pode conter de inquieto e satisfeito.Advinha que tem qualquer coisa no peitoe às promessas do amor a alma escancara ansiadocomo os áureos portais de um palácio encantado!...Mas a mágoa que ronda a alegria de pertoentra no coração sempre que o encontra aberto...Juca Mulato sofre... Esse olhar calmo e docefulgiu-lhe como a luz, como a luz apagou-se.Feliz até então, tinha a alma adormecida....Esse olhar que o fitou, o acordou para a vida!A luz que nele viu deu-lhe a dor que agora o assombra,como o sol que traz a luz e, depois, deixa a sombra...E, na noite estival, arrepiadas, as plantastinham na negra fronde, umas roucas gargantasbradando, sob o luar opalino, de chofre:" Sofre, Juca Mulato, é tua sina, sofre...Fechar ao mal de amor nossa alma adormecidaé dormir sem sonhar, é viver sem ter vida...Ter, a um sonho de amor, o coração sujeitoé o mesmo que cravar uma faca no peito.Esta vida é um punhal com dois gumes fatais:não amar é sofrer; amar é sofrer mais"!E, despertando à Vida esse caboclo rude,alma cheia de abrolhos,notou, na imensa dor de quem se desiludeque, desse olhar que amou, fugitivo e sereno,só lhe restara no lábio um travo de veneno,uma chaga no peito e lágrimas nos olhos!A SerenataCanta, Juca Mulato...Ele pega na viola:seu dedo nervoso os machetes esfrola.Solta um gemido o aço vibradocomo um grito de dor de um peito esfaqueado.É tão suave a canção, tão dolente e tão langueque cada nota lembra uma gota de sanguea fluir e a pingar dos lábios de uma chaga.É noite. A brisa sopra uma carícia vaga.A turba espera. O terreiro tem brilhosquando, de chapa, a lua esplende nos ladrilhose, sentindo a paixão estuar-lhe a garganta,Juca Mulato canta:"Veio coleante, essa mágoaarrastas triste e submisso;também choro, veio dágua,sem que ninguém dê por isso...Saltas nos seixos de chofre.Choras. No mundo inclemente,só não chora quem não sofresó não sofre quem não sente...Procuras dentre os abrolhosver o céu que astros povoaram.Eu também procuro uns olhosque nunca me procuraram...Os céus não vêem tua mágoa,nem estas ela advinha...Veio d’água, veio d'água,Tua sorte é igual à minha.Ora em bolhas vãs tu medras,eu em sonhos bem mesquinhos,Teu leito é cheio de pedras,minha alma é cheia de espinhos...Se uma rama se desfolhasobre teu dorso e resvala,corres doido atrás da folhasem poder nunca alcançá-la.Às vezes, também, risonho,um sonho minh’alma junca,Corro doido atrás do sonhoSem poder tocá-lo nunca.Ventura... doida corridade uma folha sobre um veio.Folha... Esperança perdidade um bem que nunca me veio.Assim vou, sangrando mágoae doido, para onde forveio d’água, veio d’águacorro atrás da minha dor!"Alma AlheiaQue tens, Juca Mulato ?Uma tristeza mansaembaça-lhe o fulgor dos olhos de criança.Ele é outro... Um langor anda a abrasar-lhe a pele.Não sabe definir o que há de novo nele.Fuma e segue pelo ar uma espiral que esvoaça,pensa que seu destino é igual a essa fumaça..."A vida é mesmo assim..." ele cisma tristonho."Sai do fogo da dor a fumaça do sonho"...Da cocheira, um nitrir, de intervalo a intervalo,vibra no ar... É o pigarço. Esse pobre cavaloanda esquecido e há muito que, sozinho,sente a falta que faz o calor de um carinho.Juca Mulato todo o dia vinha vê-lo...Afagava-lhe o dorso, acamava-lhe o pelo,e ele, baixando, quieto, as pálpebras vermelhas,nitrindo e resfolgando, espetava as orelhas...Juca Mulato, então, numa voz doce e calma,dizia-lhe baixinho o que ele tinha n’alma.Coisa de pouca monta: umas fanfarronadas,uns receios pueris, façanhas de caçadas,desafios na viola em noites de luar;coisas que tinha pejo até de lhe contar,que sussurrava a custo, onde, por entre os dentes,a gente adivinhava umas frases ardentes:bocas mordendo um seio em que os bicos quentinhostinham a cor da rosa e a ponta dos espinhos...Ele ria e a risada espoucava-lhe aos pinchose o pigarço sisudo explodia em relinchosque diriam, talvez, traduzido em frases:"Toma tento, Mulato! Olha bem o que fazes..."Juca afagando-o, então, murmurava contente:"Pigarço, você tem uma alma como a gente!"Hoje, anda abandonado e pesa-lhe o abandono.Há no seu manso olhar saudades de seu dono.Quem não vê nesse olhar úmido e cor de enxofreque esse cavalo sofre ?Vê uma ave voar na tarde calma e suave,vem-lhe o desejo absurdo e doido de ser ave.Quando junto a uma fonte acaso se debruça,se a corrente soluça, ele também soluça...Depois, envergonhado, encolhe-se, procurano seu imo o porquê dessa vaga ternura.Até vendo uma flor, comove-se, suspira..."Juca: toma cuidado... Estás ficando gira...Deixa de te arrastar, como um doido qualquer,atrás da tentação de uns olhos de mulher!"E resolve, consigo, ir altivo e insolente,fingir que não padece e mostrar que não sente,montar o seu pigarço, atacar a restingaàs foiçadas, beber um cálice de pingana venda do caminho e, entre parvos caipiras,de mistura, contar três ou quatro mentirasonde lampeja a faca, onde, aos uivos e aos bradospõe em fuga, triunfante, um bando de soldados!Revive a ilusão! Ele é outro! Salvou-se!Insidioso, de novo, um olhar meigo e doceo alucina, o subjuga, o domina, o amolece...E nem sabe porque humilhado obedeceà sugestão da luz que cintila naquelelânguido e triste olhar que nunca olhou para ele.FascinaçãoTudo ama!As estrelas no azul, os insetos na lama,a luz, a treva, o céu, a terra, tudo,num tumultuoso amor, num amor quieto e mudo,tudo ama! tudo ama!Há amor na alucinadafascinação do abismo,amor paradoxal, humano e forte,que se traduz nas febres do sadismo,nessa atração perpétua para o Nada,nessa corrida doida para a Morte.Por isso, quando as lianasem lascívias florais cercam de abraçoso tronco hirsuto e grosso,têm, no amplexo mortal, crueldades humanas.Há no erótico ardor de enlaçá-lo, abraçá-lo,a assassina violência de dois braçoscrispados num pescoçoatenazando-o para estrangulá-lo!É que o amor quer a morte. Num momentoresume a vida, os loucos entusiasmosdos supremos espasmos...Nesse furor que o invade,tem a volúpia da ferocidade,tem o delírio do aniquilamento!É por isso que vês, por tudouma luta de morte, um desespero mudo:a insídia da raiz que mina a terra e a esgota,o caule que ergue o fuste, a rama, em sobressalto,agitando pelo ar a própria dor ignota,no torturante amor do mais puro e mais alto!E, na noite estival,enchendo o Espaço e o Tempo, a Luz e a Treva,o turbilhão fantástico se elevado amor Universal.Tudo ama!As estrelas no azul, os insetos na lama,a luz, a treva, o céu, a terra, tudo,num tumultuoso amor, num amor quieto e mudo,tudo ama! Tudo ama!...Juca Mulato freme. Imerge os olhos entreas estrelas curiosas.Não sabe que anda o amor nos espaços profundosa fecundar o ventredas próprias nebulosasna eterna gestação de novos mundos...Ele é a matriz da vida: multiplicaseres e coisas, numa força eterna,cria o verme, animais que andam de rastros.Mata e ressurge, estiola e frutifica,e, pelo espaço rútilo, governaa prodigiosa rotação dos astros!E a vertigem do amor, fascinadora,tudo arrasta, fantástica, nos braçose a terra que palpita, canta e chora,ora imersa na treva ora imersa na aurora,leva através do Tempo e dos Espaços...Acendendo no olhar um lampejo divino,Juca Mulato cede à vertigem que o enlaçae brada num transporte:"Arrasta-me também, no turbilhão que passa!Leva-me ao teu destino,Amor que vens para a Vida e que vais para a Morte!"Lamentação"Amor?Receios, desejos,promessas de paraísos,depois sonhos, depois risos,depois beijos!Depois...E depois, amada?Depois dores sem remédio,depois pranto, depois tédio,depois... nada!""Também como esse bosque eu tive outrorana alma um bosque cerrado de emoções.As palmeiras das minhas ilusõesiam levando o fuste espaço afora.Floriam sonhos; era uma pletorade crenças, de desejos, de ambições...Não havia por todos os sertõesmais luxuriante e mais violenta flora.Ai! Bosque real, é o tempo das queimadas!...É agosto, é agosto! O fogo arde o que existeem turbilhões sinistros e medonhos.Ai de nós!... Somos almas desgraçadas,pois na luz de um olhar lânguido e tristetambém ardeu o bosque dos meus sonhos...""Água cantante, soluçante, esse gementemarulho triste, quantas tristes cismas trás...E fica incerta, ao ouvir-te a voz, a dor da gente,se vais cantando por ansiar o que há na frenteou soluçando pelo que deixaste atrás...Água cantante, água estuante, é singulara semelhança em que te iguala à minha sorte:vais para a frente e nunca mais hás de voltar,vens da montanha e vais correndo para o mar,venho da vida e vou correndo para a morte.Água cantante, ai, como tu, esta alma embrenhonas incertezas de caminhos que não sei...E, na inconstância em que me agito, só obtenhoessa ânsia imensa de deixar o que já tenho,depois a dor de não ter mais o que deixei!"Tenho uma santa em casa; o seu olhar encanta.O olhar dela é, porém, igualzinho ao da santa.Quando rezo, nem sei, é como o olhar da corça,tem, na própria fraqueza, a sua própria força.Quando o fito minha alma enche-se da incertezaque há na canoa sem dono á flor da correnteza.Ele é tal qual o sol, indiferente e mudo,sem saber quem aclara anda aclarando tudo...Mas no olhar que o fitou brilha,constantemente,um reflexo de luz ambicionada e ausente.Eu nunca vi o mar, mas vendo esse olhar pensonum barco que se afasta onde se agita um lenço...Ou no doido terror que, em meio de procelas,há num casco sem leme ou num barco sem velas...Creio ver o meu vulto em teus olhos, tão vagocomo as sombras que espelham a água mortade um lago.Eu bem sei que, tal qual na líquida planície,o meu vulto não vai além da superfície.Fica à tona, a boiar nessa pupila absortacomo na água parada alguma folha morta...""Pigarço: a dor me aquebranta...Quando lembro o olhar que adoroe que nunca esquecerei,ah! Sinto um nó na gargantae choro, pigarço, choro,eu que até chorar não sei...Quando, a trote, ela nos via,debruçada na janela,nós levávamos, após,com o pó que do chão se erguiao nosso olhar cheio delae o dela cheio de nós...Então, pouco me importavaque seu olhar nos seguisse...Galopava-se a valer...Quando esse olhar eu olhavaera como se não o vissetanto o olhava sem ver!Hoje pago essa ousadia...Ela os olhos de mi tolhe.Queixar-me disso por que ?Antes era eu que não o via,agora, por mais que me olhe,é ela que não me vê.Sou um caboclo do matoque ronda a luz de uma estrela...Já viste uma coisa assim?E o pobre Juca Mulatomorrerá por causa delae tu, por causa de mim...Eu da luz desse olhar garço,tu da dor que te machuca,morreremos e, depois,eu fico sem meu pigarço,meu pigarço sem seu Juca e o olhar dela... sem nós dois!"PresságiosJuca Mulato sofre. Em cismas se aquebranta.Uma viola geme, uma voz triste canta:"Antes de amar eu dizia:para cortar na raizesta constante agoniapreciso amar algum dia,amando serei feliz"."Amei... desventura minha!Quis curar-me e piorei.O amor só mágoas continhae aos tormentos que já tinha,novos tormentos juntei".A cantiga, a gemer, nos ecos agoniza.A vaga sugestão dessa angústia imprecisacontamina-lhe a dor que o tortura sem pausa.Juca sofre... Por que? Não advinha a causa.Só sabe que, em seu peito, o olhar amado e langue,deixa um rastro de luz como um rastro de sangue...Tornou-o, pouco a pouco, a imensa dor que o oprime,pálido como a cera e magro como um vime.Tem olheiras cercando os grandes olhos lassoscor do manto que traz Nosso Senhor dos Passosquando carrega a cruz na procissão das Doresno mais tristonho andor de todos os andores...Mas por que sofre assim? Talvez mesmo ande nissoartimanhas do Demo e coisas de feitiço...Precisa, sem demora, ir uma sexta-feira,à tapera do Roque, abrir sua alma inteira,contar-lhe o mal que sofre e do peito arrancaressa mágoa, essa luz, esse olhar!A MandingaJuca Mulato apeia.É macabro o pardieiro.Junto à porta cochila o negro feiticeiro.A pele molambenta o esqueleto disfarça.Há uma faísca má nessa pupila garça,quieta, dormente, como as águas estagnadas.Fuma: a fumaça o envolve em curvas baforadas.Cuspinha; coça a perna onde a sarna esfarinhaa pele; pachorrento ainda uma vez cuspinha.Com o seu sinistro olhar o feiticeiro mede-o.- Olha, Roque, você me vai dar um remédio.Eu quero me curar do mal que me atormenta.- Tenho ramos de arruda, urtigas, água benta,uma infusão que cura a espinhela e a maleita,figas para evitar tudo que é coisa feita...Com uma agulha e um cabelo, enrolado a capricho,à mulher sem amor faço criar rabicho.Olho um rasto, depois de rezar um bocadovou direitinho atrás do cavalo roubado.Com umas ervas que sei, eu faço, de repente,do caiçara mais mole, um caboclo valente!Dize, Juca Mulato, o mal que te tortura.- Roque, eu mesmo não sei de este mal tem cura...- Sei rezas com que venço a qualquer mau olhado,breves para deixar todo o corpo fechado.Não há faca que o vare e nem ponta de espinho:fica o corpo tal qual o corpo do Dioguinho...Mas de onde vem o mal que tanto de abateu?- Ele vem de um olhar que nunca será meu...Como está para o sol a luz morta da estrelaa luz do próprio sol está para o olhar dela...Parece o seu fulgor quando o fito direito,uma faca que alguém enterra no meu peito,veneno que se bebe em rútilos cristais e,sabendo que mata, eu quero beber mais...- Eu já compreendo o mal que teu peito povoa.Dize Juca Mulato, de quem é esse olhar?- Da filha da patroa.- Juca Mulato! Esquece o olhar inatingível!Não há cura, ai de ti, para o amor impossível.Arranco a lepra do corpo, extirpo da alma o tédio,só para o mal de amor nunca encontrei remédio...Como queres possuir o límpido olhar dela ?Tu és qual um sapo a querer uma estrela...A peçonha da cobra eu curo... Quem soubercure o veneno que há no olhar de uma mulher!Vencendo o teu amor, tu vences teu tormento.Isso conseguirás só pelo esquecimento.Esquecer um amor dói tanto que pareceque a gente vai matando um filho que estremeceouvindo, com terror, no peito, este estribilho:"Tu não sabes, cruel, que matas o teu filho?"E, quando se estrangula, aos seus gemidos loucos,a gente quer que viva e vai matando aos poucos!Foge! Arrasta contigo essa tortura imensaque o remédio é pior do que a própria doença,pois, para se curar um amor tal qual esse...- Que me resta fazer ?- Juca Mulato: esquece!A Voz das CoisasE Juca ouviu a voz das coisas. Era um brado:"Queres tu nos deixar, filho desnaturado?"E um cedro o escarneceu: "Tu não sabes, perverso,que foi de um galho meu que fizeram teu berço?E a torrente que ia rolar no abismo:"Juca, fui eu quem deu a água para o teu batismo".Uma estrela a fulgir, disse da etérea altura:"Fui eu que iluminei a tua choça escurano dia em que nasceste. Eras franzino e doente.E teu pai te abraçou chorando de contente...- Será doutor! - a mãe disse, e teu pai, sensato:- Nosso filho será um caboclo do mato,forte como a peroba e livre como o vento! -Desde então foste nosso e, desde esse momento,nós te amamos seguindo o teu incerto trilhocom carinhos de mãe que defende seu filho!"Juca olhou a floresta: os ramos, nos espaços,pareciam querer apertá-lo entre os braços!"Filho da mata, vem! Não fomos nós, ó Juca,o arco do teu bodoque, as grades da arapuca,o varejão do barco e essa lenha sequinhaque de noite estalou no fogo da cozinha?Depois, homem já feito, a tua mão ansiadanão fez, de um galho tosco, um cabo para a enxada?" "Não vás" - lhe disse o azul - "Os meus astros ideaisnum forasteiro céu tu nunca os verás mais.Hostis, ao teu olhar, estrelas ignoradashão de relampejar como pontas de espadas.Suas irmãs daqui, em vão, ansiosas, logo,irão te procurar com seus olhos de fogo...Calcula, agora, a dor destas pobres estrelascorrendo atrás de quem anda fugindo delas..."Juca olhou para a terra e a terra muda e friapela voz do silêncio ela também dizia:"Juca Mulato, és meu! Não fujas que eu te sigo.Onde estejam teus pés, eu estarei contigo.Tudo é nada, ilusão! Por sobre toda a esferahá uma cova que se abre, há meu ventre que espera.Nesse ventre há uma noite escura e ilimitada,e nela o mesmo sono e nele o mesmo nada.Por isso o que te vale ir, fugitivo e a esmo,buscar a mesma dor que trazes em ti mesmo ?Tu queres esquecer? Não fujas ao tormento.Só por meio da dor se alcança o esquecimento.Não vás. Aqui serão teus dias mais serenos,que, na terra natal, a própria dor dói menos...E fica que é melhor morrer (ai, bem sei eu!)no pedaço de chão em que a gente nasceu!"RessurreiçãoCoqueiro! Eu te compreendo o sonho inatingível:queres subir ao céu, mas prende-te a raiz...O destino que tens de querer o impossívelé igual a este meu de querer ser feliz.Por mais que bebas a seiva e que as forças recolhas,que os verdes braços teus ergas aos céus risonhos,no último esforço vão, caem-te murchas as folhase a mim, murchos, os sonhos!Ai! coqueiro do mato! Ai! coqueiro do mato!Em vão tentas os céus escalar na investida...Tua sorte é tal qual a de Juca Mulato...Ai! tu sempre serás um coqueiro do mato...Ai! Eu sempre serei infeliz nesta vida!""Ser feliz! Ser feliz estava em mim, Senhora...este sonho que ergui, o poderia poronde quisesse, longe até da minha dor,em um lugar qualquer onde a ventura mora;onde, quando o buscasse, o encontrasse a toda hora,tivesse-o em minhas mãos... Mas, louco sonhador,eu coloquei muito alto o meu sonho de amor...Guardei-o em vosso olhar e me arrependo agora.O homem foi sempre assim... Em sua ingenuidadeteme levar consigo o próprio sonho, a esmo,e oculta-o sem saber se depois o achará...E quando vai buscar sua felicidade,ele, que poderia encontrá-la em si mesmo,escondeu-a tão bem que nem sabe onde está!"E Mulato parou.Do alto daquela serra,cismando, o seu olhar era vago e tristonho:"Se minha alma surgiu para a glória do sonho,o meu braço nasceu para a faina da terra."Reviu o cafezal, as plantas alinhadas,todo o heróico labor que se agita na empreita,palpitou na esperança imensa das floradas,pressentiu a fartura enorme da colheita...Consolou-se depois: "O Senhor jamais erra...Vai! Esquece a emoção que na alma tumultua.Juca Mulato volta outra vez para a terra,procura o teu amor numa alma irmã da tua.Esquece calmo e forte. O destino que imperaum recíproco amor às almas todas deu.Em vez de desejar o olhar que te exaspera,procura esse outro olhar que te espreita e te espera,que há, por certo, um olhar que espera pelo teu..."
MÁSCARASPERSONAGENS:Arlequim : Um desejoPierrot : Um SonhoColombina: A MulherEm qualquer terra em que os homens amem.Em qualquer tempo onde os homens sonhem.Na vida.BEIJO DE ARLEQUIMIO crescente cintila como uma cimitarra. Lírios longos, grandes mãosbrancas estendidas para o luar, bracejam nas pontas das hastes. Umabalaustrada. Uma bandurra. Um Arlequim. Um Pierrot E, sobre asmáscaras e os lírios, a volúpia da noite, cheia de arrepios e de aromas.ARLEQUIM diz:Foi assim: deslumbrava a fidalga beleza da turba nos salões da SenhoraDuquesa.Um cravo, em tom menor, numa voz quase humana, tecia o madrigal deuma antiga pavana. Eu descera ao jardim. Cheirava a heliotrópio e vi,como quem vê num vago sonho de ópio, uma loura mulher...PIERROTLoura?ARLEQUIMComo as espigas...Como os raios de sol e as moedas antigas...Notei-lhe, sob o luar, a cabeleiracrespa, anca em forma de lira e a cintura de vespa, um cravo no listão que oseio lhe bifurca, pezinhos de mousmé, olhos grandes, de turca... A boca, ondeo sorriso era como uma abelha, recendia tal qual uma rosa vermelha.PIERROTFalaste-lhe?ARLEQUIMFalei...PIERROTE a voz?ARLEQUIMVaga e fugace.Tinha a voz de uma flor, se acaso a flor falasse...PIERROTE depois?ARLEQUIMEu fiquei, sob a noite estrelada, decidido a ousar tudo e não ousandonada...Vinha dela, pelo ar, espiritualizado numa onda volúpia, um cheiro depecado...Tinha a fascinação satânica, envolvente, que tem por um batráquio oolhar duma serpente... e fiquei, mudo e só, deslumbrado e tristonho,sentindo que era real o que eu julgava um sonho! Em redor o jardimrecendia.Umas poucastulipas cor de sangue, abertas como bocas, pela voz do perfumeinsinuavam perfídias...Tremia de pudor a carne das orquídeas... Os lírios senhoreais, esbeltoscomo galgos, abriram para o céu cinco dedos fidalgos fugindo à mão floral do cálix longo e fino.Um repuxo cantava assim como um violino e, orquestrando pelo ar asharmonias rotas, desmanchava-se em sons, ao desfazer-se em gotas!Entre a noite e a mulher, eu trêmulo hesitava: se a noite seduzia, amulher deslumbrava!Dei uns passosAo ruído agitou-se assustada. Viu-me...PIERROTE ela que fez?ARLEQUIMDeu uma gargalhada.PIERROTPor que?ARLEQUIMSei lá! Mulher...Talvez porque ela achasse ridículo Arlequim com ar deLovelace...Aconcheguei-me mais: “Deus a guarde, Senhora!”- Obrigada. Quem és?- “Um arlequim que a adora!”Vinha do seio dela, entre a renda e a miçanga, um cheiro de mulher e umcheiro de cananga. Eram os olhos seus, sob a fronte alva e breve, comodois astros de ouro a arder num céu de neve. Mordia, por não rir, o lábioúmido e langue, vermelho como um corte ainda vertendo sangue...E falei-lhe de amor...PIERROTE ela?ARLEQUIMFicou calada...Meu amor disse tudo, ela não disse nada, mas ouviu , com prazer, a fraseque renova no amor que é sempre velho, a emoção sempre nova!PIERROTQue lhe disseste enfim?ARLEQUIMO ardor do meu desejo,a glória de arrancar dos seus lábios um beijo, a volúpia infernal dos seusolhos devassos, o prazer de a estreitar , nervoso, nos meus braços, desentir a lascívia heril dos seus meneios, esmagar no meu peito a carnedos seus seios!PIERROT, assustado:Tu ousaste demais...ARLEQUIM, cínico:Ingênuo! A mulher belaadora quem lhe diz tudo o que é lindo nela. Ousa tudo, porque todo ohomem enamorado se arrepende, afinal, de não ter tudo ousado.PIERROTE ela?ARLEQUIMVinha pelo ar, dos zéfiros no adejo, um perfume de amor lascivo comoum beijo, como se o mundo em flor vibrasse, quente e vivo, no erotismotriunfal de um amor coletivo!PIERROT, fremindo:E ela?ARLEQUIMAnsiando, ouviu toda essa paixão louca, levantou-se...PIERROTDepois?ARLEQUIM , triunfante:Deu-me um beijo na boca!Um silêncio cheio de frêmito. Os lírios tremem. Pierrotolha o crescente. Arlequim dá um passo, vê a brandura,toma-a entre as mãos nervosas e magras e tange, distraído,as cordas que gemem.ARLEQUIMLinda viola.PIERROT, alheado:Bom som...ARLEQUIMQue musicais surpresas não encerra a mudezdestas cordas retesas...Confidencial a Pierrot:Olha: penso, Pierrot, que não existe em suma, entre a viola e a mulher,diferença nenhuma. Questão de dedilhar, com certa audácia e calma,numa...estas cordas de aço, e na outra...as cordas d’alma!Suavemente, exaltando-se:O beijo da mulher! Ó sinfonia louca da sonata que o amor improvisa naboca... No contado do lábio, onde a emoção acorda, sentir outro vibrar,como vibra uma corda... À vaga orquestração da frase que sussurra verum corpo fremir tal qual uma bandurra...Desfalecer ouvindo a músicaque canta no gemido de amor que morre na garganta...Colar o lábioardente à flor de um seio lindo, ir aos poucos subindo...ir aos poucossubindo...até alcançar a boca e escutar, num arquejo, o universo pararna síncope de um beijo!....................................................................................................................Eis toda a arte de amar! Eis, Pierrot fantasista, a suprema criação daminha alma de artista. Compreendes?PIERROT, ansiado:E a mulher?ARLEQUIM, lugubremente:A mulher? É verdade...Levou naquele beijo a minha mocidade.PIERROTE agora? Onde ela está?ARLEQUIM, ironicamente místico:No meu lábio, no ardor desse beijo, que é todo um romance de amor!Seduzido pela angústia da saudade:No temor de pedi-lo e na glória de tê-lo...No gozo de prová-lo e na dor de perdê-lo...No contato desfeito e no rumor já mudo...No prazer que passou...Nesse nada que é tudo:O passado!... a lembrança... a saudade... o desejo...Balbuciando:Um jardim... Um repuxo...Uma mulher... Um beijo....(Longo silêncio cheio de evocação e de cismas).PIERROT, ingenuamente:É audaciosa demais a tua história...ARLEQUIM, ríspido:Enfim,um Arlequim, Pierrot, é sempre um Arlequim. Toda história de amor sópresta se tiver, como ponto final, um beijo de mulher!O SONHO DE PIERROTIIPIERROTEu também, Arlequim, nesta vida ilusória, como todos Pierrots, eutenho uma história, vaga, talvez banal, mas triste como um cântico...ARLEQUIM, sarcástico:Não compreendo um Pierrot que não seja romântico, branco como omarfim, magro como um caniço, enchendo o mundo de ais, sem nuncapassar disso.PIERROTDebochado Arlequim!ARLEQUIMBranco Pierrot tristonho...PIERROTTeu amor é lascívia!ARLEQUIME o teu amor é sonho...PIERROTÉ tão doce sonhar!... A vida , nesta terra, vale apenas, talvez, pelo sonhoque encerra. Ver vaga e espiritual, das cismas nos refolhos, toda uma vidaarder na tristeza de uns olhos; não tocar a que se ama e deixar intangidaaquela que resume a nossa própria vida, eis o amor, Arlequim. , misticismotristonho, que transforma a mulher na incerteza de um sonho....ARLEQUIM, escarninho:Esse amor tão sutil que teus nervos reclama só se aplica aos Pierrots?PIERROTNão! A todos os que amam!Aos que têm esse dom de encontrar a delícia na intenção da carícia enunca na carícia...Aos que sabem, como eu, ver que no céu reflete acurva do crescente, um vulto de Pierrette...ARLEQUIM, zombeteiro:Eterno sonhador! Tu crês que vive a esmo tudo aquilo que sai de dentrode ti mesmo. Vês, se fitas o céus, garota e seminua, Colombina sentadaentre os cornos da lua...Quanta vezes não viste o seu olhar abstratonos fosfóreos vitrais das pupilas de um gato?PIERROTEssas frases cruéis, que mordem como dentes, só mostram, Arlequim,que somos diferentes. Mas minha alma, afinal, é compassiva e boa: nãocompreendes Pierrot. E Pierrot te perdoa...ARLEQUIMTua história, vai lá! Senta-te nesse banco. Conta-me: “Era uma vez umPierrot muito branco...”A história de um Pierrot sempre nisso consiste... Começa.PIERROT narrando:“Era uma vez... um Pierrot... muito triste... “Uma voz, na distância, corta, argentina, a narração de Pierrot.A VOZFoi um moço audaz, que vejono meu sonho claro e doce,O amor que primeiro amei..Abraçou-me: deu-me um beijoe, depois, lento, afastou-se,e nunca mais o encontrei.Num ser pálido e doenteresume-se o que consisteo segundo amor que amei.Ele olhou-me tristemente...Eu olhei-o muito triste...E nunca mais o encontrei!Esse amor deu-me o desejodaquele beijo encontrar.Mas nunca, reunidas, vejo,a volúpia desse beijo,e a tristeza desse olhar...A voz agoniza nos ecos. Pierrot e Arlequim tendem o ouvido procurandono ar mais uma estrofe.ARLEQUIMEssa voz...PIERROTEssa voz...ARLEQUIMSó de ouvi-la estremeço...PIERROTEu conheço essa voz!ARLEQUIMEssa voz eu conheço...Um sopro de brisa arrepia as plantas.PIERROTEscuta...ARLEQUIMEscuta...PIERROTOuviste?ARLEQUIMUm sussurro...PIERROTUm lamento...ARLEQUIMFoi o vento talvez.PIERROTSim. Talvez fosse o vento.ARLEQUIMConta a história, Pierrot.Pierrot continuando:Numa noite divinacomo tu, num jardim, encontrei Colombina. Loira como um trigal ebranca como a lua.ARLEQUIMEra loira também?PIERROTTão loira como a tua...Eu descera ao jardim quebrado de fadiga. Dançavam no salão...ARLEQUIM, interrompendo:... uma pavana antiga,e notaste ao luar a cabeleira crespa...PIERROT... a anca em forma de lira...ARLEQUIM... e a cintura de vespa!PIERROTMãos mimosas, liriais...ARLEQUIMEm minúcias te expandes!PIERROTUm pé muito pequeno...ARLEQUIMUns olhos muito grandes!Uma mulher igual à que encontrei na vida?PIERROT, ofendido:Enganas-te, Arlequim, nem mesmo parecida!Era tal a expressão do seu olhar profundo,que não pode existir outro igual neste mundo!Felinamente ardia a íris verdoenga e dúbia,como o sinistro olhar de uma pantera núbia.Esses olhos fatais lembravam traiçoeirasferas, armando ardis nos fojos das olheiras!Tão vivos que, Arlequim, desvairado, os supusduas bocas de treva e erguer brados de luz!Tripudiavam o bem e o mal nos seus refolhos.ARLEQUIM, cismando:Essas coisas também ardiam nos seus olhos...PIERROTTive medo, Arlequim! Vendo-os, num paroxismoeu tinha a sensação de estar sobre um abismo.Não sei porque o olhar dessa estranha criaturaera cheio de horror...e cheio de doçura!Eu desejava arder nessas chamas inquietas...ARLEQUIMTendo o fim dos Pierrots?PIERROTTendo o fim dos Poetas!Aconcheguei-me dela, a alma vibrante louca, o coração batendo...ARLEQUIME beijaste-lhe a boca.PIERROT, cismarento:Não...Para que beijar? Para que ver, tristonho, no tédio do meu lábioo vácuo do meu sonho... Beijo dado, Arlequim, tem amargos ressábios...Sempre o beijo melhor é o que fica nos lábios,esse beijo que morre assim como um gemido,sem ter a sensação brutal de ser colhido...ARLEQUIME que disse a mulher?PIERROTSuspirou de desejo...ARLEQUIM , mordaz:Preferia, bem vês, que lhe desses um beijo!PIERROTNão. Ela olhou-me. Olhei... E vi que, comovida, sentiu que , nesseolhar, eu punha a minha vida...Um silêncio cheio de angústias vagas.Sob o luar claro as almas brancas dosLírios evocam fantasmas de emoçõesmortas. Os espectros das memóriasparecem recolher, como numa urna invi-sível, a saudade romântica de Pierrot...ARLEQUIM, tristonho:Essa história, Pierrot, é um pouco merencória...PIERROTA história desse olhar é toda a minha história.ARLEQUIME não a viste mais?PIERROTNem sei mesmo se existe...ARLEQUIM, contendo o riso:É de fazer chorar! Tudo isso é muito triste!Tomando-o pelo braço, confidencialmente:Entretanto, ouve aqui, à guisa de consolo:diante dessa mulher...foste um Pierrot bem tolo!Aprende, sonhador! Quando surgir o ensejo,entre um beijo e um olhar, prefere sempre um beijo!PIERROT, desconsolado:Lamentas-me Arlequim?ARLEQUIMTu não compreendeste: choro não ter colhido o beijo que perdeste.IIIO AMOR DE COLOMBINAUma voz que canta se aproxima.A VOZEsse olhar deu-me o desejodaquele beijo encontrar,mas nunca , reunidas, vejoa volúpia desse beijoe a tristeza desse olhar!PIERROT , extasiado:Escutaste, Arlequim, que cantiga tão bela?ARLEQUIMEra dela esta voz?PIERROTEsta voz era dela...Arlequim está imerso na sombra e um raio de luar iluminaPierrot. Entra Colombina trazendo uma braçada de flores.COLOMBINA, vendo Pierrot:Tu? Que fazes aqui?PIERROTEspero-te, divina...A sorte de um Pierrot é esperar Colombina!COLOMBINAPela terra florida, olhos cheios de pranto, eu procurei-te muito...PIERROTE eu esperei-te tanto!COLOMBINAOnde estavas, Pierrot? Entre as balsas amigas, tendo no peito umsonho e no lábio cantigas, dizia a cada flor: “Mimosa flor, não visteum Pierrot muito branco...”PIERROTUm Pierrot muito triste...COLOMBINAE respondia a flor: “Sei lá... Nestas campinas passam tantos Pierrotsatrás de Colombinas...” E eu seguia e indagava: “Ó regato risonho:não viste, por acaso, o Pierrot do meu sonho? “ E o regato correndoe cantando, dizia: “Coro e canto e não vejo” - e cantava e corria... Noscéus, erguendo o olhar, eu via, esguio e doente, o pálido Pierrot recurvodo crescente...Assim te procurei, entre as balsas amigas, tendo no peito um sonhoe no lábio cantigas, só porque, meu amor, uma noite, num banco, euencontrara olhar de um triste Pierrot branco.PIERROTNão! Não era um olhar! Ardia nessa chamatoda a angústia interior do meu peito que te amaNosso corpo é tal qual uma torre fechadaonde sonha , em seu bojo, uma alma encarcerada.Mas se o corpo é essa torre em carne e sangue erguida,O olhar é uma janela aberta para a vida,e, na noite de cisma, enevoada e calma,na janela do olhar se debruça nossa almaCOLOMBINA, languidamente abraçada a Pierrot:Olha-me assim, Pierrot... Nada mais belo existeque um Pierrot muito branco e um olhar muito triste...Os teus olhos, Pierrot, são lindos como um verso.Minh’alma é uma criança, e teus olhos um berçocom cadências de vaga e, à luz do teu olhar,tenho ânsias de dormir, para poder sonhar!Olha-me assim, Pierrot... Os teus olhos dardejam!São dois lábios de luz que as pupilas me beijam...São dois lagos azuis à luz clara do luar...São dois raios de sol prestes a agonizar...Olha-me assim Pierrot... Goza a felicidadede poluir com esse olhar a minha mocidadeaberta para ti como uma grande flor,meu amor...meu amor...meu amor...PIERROTMeu amor!Colombina e Pierrot abraçam-se ternamente. Há, comoum cicio de beijos, entre os canteiros dos lírios. Arlequim,vendo-os, sai da treva e, com voz firme, chama.ARLEQUIMColombina!COLOMBINA, voltando-se assustada:Quem é?ARLEQUIMSou alguém, cuja sina foi amar, com Pierrot, a mesmaColombina. Alguém que, num jardim, teve o sublime ensejo debeijar-te e jamais se esquecer desse beijo!COLOMBINA, desprendendo-se de Pierrot:Tu, querido Arlequim!ARLEQUIM, galanteador:Arlequim que te adora...Que te buscava há tanto e que te encontra agora.COLOMBINAE procurei-te em vão, mas te esperava ainda.ARLEQUIM a Pierrot:Ela está mais mulher...PIERROT num êxtase:Ai! Ela está mais linda!ARLEQUIM, enfatuado, a Colombina:É s linda, meu amor! Nessa formas perpassana cadência do Ritmo, a leveza da Graça.Teus braços musicais, curvos como perfídia,têm a graça sensual de uma estátua de Fídias.Não sendo ainda mulher, nem sendo mais criança,encarnas, grande viva, a Flor de Liz de França...Sobe da anca uma curva ondulante que chegaa teu corpo plasmar como uma ânfora gregae é teu vulto triunfal, longo, heráldico, esgalgo,coleante como um cisne e esbelto como um galgo!COLOMBINA, fascinada:Lindo!ARLEQUIME não disse tudo... E não disse do risoboêmio como ébrio e claro como um guizo.E ainda não falei dessa voz de sereiaque, quando chora, canta, e quando ri, gorjeia...Não falei desse olhar cheio de magnetismo,que fulge como um astro e atrai como um abismo,e do beijo, que como uma carícia louca...ainda canta em meu lábio e ainda sinto na boca!COLOMBINA com um voz sombria de volúpia:Fala mais, Arlequim! Tua voz quente e languetem lascivo sabor de pecado e de sangue.O venenoso amor que tua boca expele,põe-me gritos na carne e arrepios na pele!Fala mais, Arlequim! Quando te escuto, sintoO desejo explodir das potências do instinto,O brado da volúpia insopitada, a fúria,do prazer latejando em uivos de luxúria!Fala mais, Arlequim! Diz o ardor que enlouquecea amada que se toca e aos poucos desfalece,e que, cega de amor, lábio exangue, olhar pasmo,agoniza num beijo e morre num espasmo.Fala mais, Arlequim! Do monstruoso transporteque, resumindo a vida, anseia pela morte,dessa angústia fatal, que é o supremo prazerda glória de se amar, para depois morrer!PIERROT, num soluço:Ai de mim!...COLOMBINA, como desperta:Tu Pierrot!PIERROT, num fio de voz:Ai de mim que, tristonho, traziaà tua vida a oferta do meu sonho...Pouca coisa, porém... Uma almaardente e inquieta arrastando na terra um coração de poeta.Na velha Ásia, a Jesus, em Belém, um Rei Mago, não tendo outropartiu através de Cartago, atravessando a Síria, o Mar Morto infinito,a ruiva e adusta Líbia, o mudo e fulvo Egito, as várzeas de Gisej,o Hebron fragoso e imenso, só para lhe ofertar uns grânulos deincenso... Também vim, sonhador, pela vida, tristonho, trazer-teo meu amor no incenso do meu sonho.COLOMBINA com ternura:Como te amo, Pierrot...ARLEQUIME a mim, cujo desejo te abriu o coração com a chave do meu beijo?A tua alma era como a Bela Adormecida: o meu beijo a acordoupara a glória da vida!CALOMBINA fascinada:Como te amo, Arlequim!...PIERROTdesvairado pelo ciúme, apertando-lhe os pulsos,numa voz estrangulada:A incerteza que esvoaça desgraça muito mais do que a própriadesgraça. Escolhe entre nós dois... Bendiremos os fados sabendoo que é feliz, entre dois desgraçados!ARLEQUIMDize: Queres-me bem?PIERROT:Fala: gostas de mim?COLOMBINA, hesitante:A Pierrot:Eu amo-te , Pierrot...A Arlequim:... Desejo-te, Arlequim...ARLEQUIM, soturnamente:A vida é singular! Bem ridícula, em suma... Uma só, ama dois...e dois amam só uma!..COLOMBINA , sorrindo e tomando ambos pela mão:Não! Não me compreendeis... Ouvi, atentos, pois meu amor secompõe do amor de todos dois... Hesitante, entre vós, o coração balanço:A Arlequim:O teu beijo é tão quente...A Pierrot:O teu sonho é tão manso...Pudesse eu repartir-me e encontrar minha calma dando a Arlequimmeu corpo e a Pierrot a minh’alma! Quando tenho Arlequim, queroPierrot tristonho, pois um dá-me o prazer, o outro dá-me o sonho!Nessa duplicidade o amor todo se encerra: um me fala do céu...outro fala da terra! Eu amo, porque amar é variar, e em verdadetoda a razão do amor está na variedade...Penso que morreria o desejo da gente, se Arlequim e Pierrot fossemum ser somente, porque a história do amor pode escrever-se assim:PIERROTUm sonho de Pierrot...ARLEQUIME um beijo de Arlequim!
NOITEAs casas fecham as pálpebras das janelas e dormem.Todos os rumores são postos em surdina,todas as luzes se apagam.Há um grande aparato de câmara funeráriana paisagem do mundo.Os homens ficam rígidos,tomam a posição horizontale ensaiam o próprio cadáver.Cada leito é a maquete de um túmulo.Cada sono em ensaio de morte.No cemitério da trevatudo morre provisoriamente.
BANZOE por que deixou na areia do Congoa aldeia de palmas;e porque seus ídolos negrosnão fazem mais feitiços;e porque o homem branco o enganou com missangase atulhou o porão do navio negreirocom seu desespero covarde;e porque não vê mais de ânfora ao ombroa imagem do congo nas águas do Kuango,ele fica na porta da senzalade mão no queixo e cachimbo na boca,varado de angústia,olhando o horizonte,calado, dormente,pensando,sofrendo,chorando.morrendo.
Poesia e Prosa
Poemas do Vicio e da Virtude, Moisés, Juca Mulato, Máscaras, Angústia
de D. João, Chuva de Pedra, Poemas de Amor, Amor de Dulcinéa,
Poesias, Poemas, República dos Estados, Unidos do Brasil, O Vôo.
Romances
Laís, Tragédia de Zilda, Dente de Ouro, A Tormenta,
O Homem e a Morte, A Filha do Inca, Kalum,
O Mistério do Sertão, Kummunká, Salomé.
Contos e Novelas
A Mulher que Pecou, O Crime Daquela Noite, Toda Nua, A Outra
Perna do Saci, O Despertar de S. Paulo, A Fronteira, Flama e Argila.
Ensaios e Monografias
A Crise da Democracia, Soluções Nacionais, Pelo Divórcio,
A Revolução Paulista Ensaio de Exposição do Pensamento
Bandeirante, Por Amor do Brasil, O Governo Julio Prestes e o
Ensino Primário, O Currupira e o Carão (com Plinio Salgado e
Cassiano Ricardo), O Momento Literário Brasileiro.
Teatro
Jesus - Tragédia sacra em versos. Suprema Conquista.
D. Quixote. O Covarde. O Incubo.
Crônicas
Pão de Moloch, Nariz de Cleópatra, Natal, O Peixe, Villa-Lobos,
Comeram um Homem, O Gato Preto, O Guarda-Chuva, O Bailado
com a Morte, As Sogras.
Literatura Infantil
As Viagens de João Peralta e Pé de Moléque.
Pé de Moléque e João Peralta no País das Formigas.
Os ultimos vôos
O Momento, Cromo, Noite, Velha Canção, Prostituta, Canção de
D. João Tenório, O Aranhol, A Paz, Destino, Cantiga do Sapateiro,
Uma História, 25 Anos, Lola, Poema do Vento,Carolina, Os mortos,
Jardim Tropical, Noturno, Bairro da Luz, Soneto, Piedosa Mentira,
O Beco, Humilde Súplica.
Memórias
A Longa Viagem (1º Etapa), A Longa Viagem (2º Etapa) .
Dezenas de peças históricas relacionadas com a vida e obra de
Menotti Del Picchia estão expostas na "Casa de Menotti Del Picchia"
no Parque Juca Mulato em Itapira - SP: Esculturas, desenhos, pinturas, folhetos, livros, originais, cartas, jornais revistas, documentos, diplomas, condecorações, e o fardão acadêmico.
Dias e horários para visitas: de segunda a sexta das 13h às 17h
Contato do Parque Juca Mulato (19) 3813-1090
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